Capítulo 1: Zema e Cacau

Posted: June 20th, 2017 | Author: | Filed under: Dezessete | Tags: , , , , | Comments Off on Capítulo 1: Zema e Cacau

Zema e Cacau eram irmãos. Quer dizer, isso era o que todo mundo achava. A verdade é que não se sabia muito sobre eles: chegavam sempre juntos, iam embora sempre juntos. Sempre. Daí que todo mundo achava que eram irmãos, embora ninguém nunca tenha perguntado. Que diferença fazia?

Também não é que ninguém tivesse intimidade com eles, pelo contrário. Eram tão parte do grupo, tão queridos, que eram sempre assunto.

– Como que você chegou aqui, Cacau?

– Mas de novo, Téo? Toda vez você pergunta isso.

– Não enche, Mário.

– Fala de outra coisa, rapaz, não vê que ele não quer falar disso de novo?

Cacau não respondia, só ria. Aliás, sorrir era uma de suas características mais marcantes: seu rosto redondo se agigantava de energia toda vez que ele abria um sorriso, aquela boca enorme, os dentes brancos contrastando com a pele negra. Se já não tivesse um apelido, podia ser chamado de Alegria. Combinava com seu jeito de ser. E de jogar: era, de longe, o melhor jogador daquele time. Rápido, imprevisível, canhoto, cortava pra dentro e pra fora e deixava seus marcadores perdidos, toda vez. Era cena comum naquele campo, quase como um roteiro de todo jogo: primeiro o treinador do adversário gritava com o lateral-direito, pedindo atenção “no negrinho”. Aquilo parecia enfurecer Cacau, “negrinho, onde já se viu”, e ele entortava ainda mais o João da vez. O treinador ralhava, não adiantava. Mandava bater. Mas bater como? Cacau era liso, escapava de todas, como que em uma representação simbólica do que era ser quase sempre o único negro em um jogo dominado por brancos. Era raro tomar uma pancada. Saci: se não fosse Cacau, nem Alegria, seria Saci. Lá pela terceira vez em que ele chegava na linha de fundo, o treinador adversário, sem saber o que fazer, acabava trazendo mais um marcador pro lado direito. E era aí que o Zema aparecia.

O Zema era alto e magrelo, apesar de forte – ou será que era forte apesar de magrelo? Tanto faz. Sabia se posicionar também, e sabia que depois que o Cacau infernizava a vida da defesa pela direita sempre sobrava espaço pra ele dentro da área. Com seu jeitão desengonçado, de quem parecia não pertencer ao futebol, enganava os zagueiros pra completar o roteiro: quando um deles saía pra cobrir o pobre lateral direito na tarefa inglória de tentar parar Cacau, Zema se metia entre a dupla de zaga e esperava. Mais hora menos hora, a bola ia acabar ali, no ponto final do roteiro: sua perna direita ou sua cabeça, num cruzamento do companheiro de ataque. Gol do União Lapa – e Zema saía pro abraço, sua branquitude estereotípica balançando os braços daquele jeito bem de imigrante espanhol mesmo.

A amizade dos dois era bonita de se ver. Dentro e fora de campo. Onde moravam? Como tinham vindo parar na Lapa? Quem contou pra eles que o União, depois de tentar a sorte na divisão de cima um ano antes, tinha perdido seus principais atacantes e precisava de reforço no setor? Teria sido obra do acaso? Ninguém sabia, e a cada drible de Cacau com gol de Zema isso tinha menos importância.

– Pô, Zema, que chutaço no primeiro gol!

– Fica fácil depois que o Cacau acaba com eles pela esquerda, né.

– Mesmo assim, pegou na veia!

– É, dei sorte. Deu certo.

– Sorte nada, sorte nada. Joga muito!

– É, pois é.

Se Cacau era o Alegria, o Saci, Zema era o Zema: artilheiro e aguerrido no campo, desconfiado e quieto fora dele. Não falava muito, e nem gostava de ser notado. Era como se cada gol fosse ao mesmo tempo uma felicidade e um desespero: a interação na comemoração e os comentários depois do jogo eram sempre um desafio. Não via sentido em se orgulhar do futebol, ou de ser quem era. Quase nunca se exaltava. Sua voz só ganhava volume quando o assunto era trabalho.

– E aí, Gio, atrasado de novo?

– Desculpa, Toni. Meu chefe me obrigou a fazer hora extra.

– De novo, Gio? Tem que fazer alguma coisa, a gente não pode entrar em campo sem goleiro!

– Ê, Toni, segura a bronca aí, companheiro. Se alguém tem que ouvir umas boas, é o patrão dele, não ele.

– Tá certo, Zema. Você e as suas greves. Vai se trocar, Gio!

– Tô indo, tô indo.

– Minhas greves não, nossas greves! Ou você é dono de fábrica agora?

– Depois, Zema, depois, que agora eu preciso pensar na escalação!

Nessas horas, a alegria de Cacau desaparecia. Já tinha perdido a conta de quantos empregos tinha procurado, e nada. Nunca tinha conseguido um, sobrevivia fazendo bicos que ninguém fazia ideia quais eram. Zema, inclusive, já tinha sido demitido uma vez por brigar com o patrão depois deste se recusar a contratar Cacau. O motivo? Nenhum. Quer dizer, nenhum que tenha sido dito. Zema sabia – e Cacau mais ainda – o porquê.

– Não é possível, não é possível! Meus pais não vieram da Espanha pra cá pra viver em outro país dividido. Qual o sentido disso?

– Seus pais vieram pra cá por vontade própria, Zema. Já os meus…

– Vontade própria naquelas, né, Cacau. Ninguém abandona família, amigos e a própria história porque quer. Era isso ou morrer de fome por lá.

– E por aqui não quase morrem também?

– Quase. Pra não morrer precisamos continuar nos organizando. Estamos cada vez mais fortes, você não vê?

– Opa que não. Estamos quem, galego? O país passou muito mais tempo com meu povo escravizado do que com ele livre. E agora que estamos livres o Brasil não parece muito à vontade com a nossa presença.

– Nossa quem, dos negros?

– Nossa, de nós dois. Os negros livres e os espanhóis desordeiros, braga – Cacau chamava Zema de braga, uma brincadeira com “branquelo e galego”.

– Desordeiros não, anarquistas! Anarquia é ordem, não desordem!

– Sei, sei. Lá vem você lá da Europa com sua anarquia.

– A anarquia não serve só pra Europa, Cacau, ela é uma utopia de liberdade pra todos os povos!

– Calma, Zema, foi só uma provocaçãozinha! Você precisa dar mais risada.

– E você precisa dar menos. Aliás, não sei como pode rir tanto num assunto desse.

– O que você queria, que eu chorasse? Desistisse? Preciso rir pra poder continuar tentando. Rir e jogar bola, braga.

– É, tudo bem. Vou tentar ser menos ranzinza.

– Isso eu quero ver…

Quando começava, Zema não parava tão cedo.

– Ei, Carabina! Como tá lá no Santa Marina?

– Tá mal, Zema, tá mal. Trabalhando cada vez mais, e sem receber faz dois meses.

– E vocês não pensam em parar? Estão organizados?

– Olha, estamos discutindo, mas tá difícil.

– Vou falar com alguém do Comitê, ou do Circolo, ver se podem dar uma ajuda.

– Vai ser ótimo se puderem, Zema. Estamos precisando.

– Vai dar, vai dar, vamo que podemo!

Dali, do campo do União Lapa, na várzea do Tietê, partiam pra dentro da Lapa, rumo à venda do Francisquim. Foi lá que Zema e Cacau apareceram num sábado à noite pra tomar um trago. Acabaram conhecendo o próprio Francisquim, o Toni e o Mário falando de futebol e sendo convidados pra jogar no time. Ninguém acreditou que eles apareceriam mesmo no sábado seguinte, mas vieram, e ganharam a todos. Que dupla de ataque!

A caminhada até a venda acontecia sem nenhuma pressa. Vinham devagar, cantarolando, conversando e interagindo com a população do bairro. A italianada toda, principalmente, sempre queria papo, saber do jogo, como é que estavam no campeonato.

– Vencemos hoje, ragazzi?

– Vencemos, mas foi duro, viu? Não fosse esses dois aí e era capaz de termos perdido.

– Ma che, Toni, que essa dupla tá salvando a gente, hein? Depois daquela patifaria ano passado, a gente tava em segundo, dava pra pegar o Corinthians, me terminam o campeonato no meio…

– Politicagem, sêo Silvio, sabe como é, não querem muito um time como a gente jogando com a elite. O Corinthians, ó, já se vendeu faz é tempo.

– Deixa que o deles tá guardado, Toni! Ê, negão, fez quantos hoje?

– Fiz nada não, sêo Silvio, mas dei duas bolas pro magriça aí que, ó, foi só empurrar.

– Ê, que esse menino dá gosto de ver jogar!

– Vem no próximo sábado, sêo Silvio, vou entortar uns três pra você.

– Eu vou, eu vou! Ciao, ragazzi!

Enquanto Zema tentava evitar a atenção, Cacau até gostava de ser a alegria daquela gente. Ser a estrela da companhia era uma forma de reconhecimento e, ao mesmo tempo, de se distanciar, de não se envolver demais. Mesmo que as coisas não fossem tão simples assim. Os dribles encantavam, a alegria contagiava, mas não era um deles. Estava entre eles, mas não era um deles. A Lapa podia ser aconchegante, com suas ruas poeticamente entrelaçadas acompanhando o desenho do relevo, as casinhas operárias, os bares e comércios todos oferecendo prendas a cada jogo, atenção a cada gol, e mesmo algum conforto nas derrotas. Mas sempre haviam os olhares. De desconfiança. De acusação. Como se aquele lugar não fosse o dele. E talvez não fosse mesmo. Não pertencia, e em alguns momentos vinha uma vontade de fugir, tinha saudades do velho pai, da mãe carinhosa, do aconchego que, apesar da miséria, encontrava quando vivia com eles. Mas tinha escolhido um caminho, e era um caminho sem volta. Dali só dava pra ir pra frente. Então, o jeito era sorrir.

Para Cacau, a forma de se esconder no meio daquele bairro que lhe parecia ao mesmo tempo querido e ameaçador era brincar. E se fechar por dentro.